Cabicanca

Cegonha (fonte getty images)

Relatos

Há várias versões da lenda da Cabicanca, grande (ou mesmo a maior) parte delas na Internet. Cinjo-me à versão registada pelo Pinho Leal no seu livro Portugal Antigo e Moderno, originalmente publicado em 1873, por ser a mais antiga que encontrei e, portanto, a possível base dos recontos da lenda em causa, isto é, as outras versões dela. Chamo a atenção para uma leitura atenta desta transcrição da escrita do Pinho Leal com as construções frásicas da língua portuguesa no séc. XIX, e também para a referência desse autor a um auto sobre o dito caso, o que faz perguntar se já houve (ou ainda há) um documento legal referente à situação relatada, a que esse escritor ou alguém que lha contou teve acesso (no entanto, neste caso, auto também pode ser um texto dramático de cunho moral ou pedagógico).

«Ao pé da capela de Nossa Senhora do Castelo estão as ruínas de um castelo romano, de cantaria. Também perto desta capela existiu a igreja de S. Pedro (ainda existem as ruínas da antiga matriz e da respetiva residência num pequeno vale, ainda chamado de S. Pedro, ao sul da vila) antiga matriz da freguesia, que por ser distante da vila, e por se partir a comenda de Cristo (do real padroado) metade para Santo Eusébio de Aguiar e metade para S. Pedro de Coruche, foi abandonada, erigindo-se em igreja paroquial a de Santo Eusébio.

As más línguas, porém, atribuem o abandono da igreja de S. Pedro ao aparecimento da Cabicanca, celebérrima a medonha passarola, que aterrou os aguiarenses.

Conta-se assim o caso.

Apareceu aqui, há séculos, uma cegonha que foi fazer o seu ninho na torre da igreja matriz (S. Pedro) como é do costume destas aves.

O povo ficou horrorizado à vista de tão monstruoso pássaro (a que deu o nome de Cabicanca) e não só deixou de ir ali à missa, mas até de transitar por aqueles sítios. O mesmo pároco fugiu da residência com a sua família, e foi celebrar os ofícios divinos na capela de Santo Eusébio, ao N. da vila e atual matriz.

Andava o povo assim aterrado, quando aconteceu passar por ali Martinho Afonso (de alcunha Escorropicha, e de profissão almocreve) armado de uma espingarda, arma recentemente descoberta.

Vendo ele que a vila estava mergulhada em profunda mágoa, desamparado o povo dela a agricultura, os negócios, os divertimentos, etc, etc, e curando somente de se preparar para o juízo final, que julgava próximo, se compadeceu de tanta desgraça e prometeu dar-lhe remédio.

Dirige-se à igreja, espera que o pássaro saia do ninho, aponta, dispara e… Zás! Ferra com a Cabicanca estatelada morta no meio do chão. O povo, ao estrondo do tiro e aos gritos vitoriosos de cabicanquicida [!], corre em tropel o enorme bico, o esgalgado pescoço, as longas pernas e o feio corpo do bicho. Todos o queriam ver ao mesmo tempo, pelo que houve pancadaria a valer (e dizem alguns que houve até mortes, mas o auto da Cabicanca não o diz).

Não se pode descrever a alegria desta gente, nem as festas que fizeram a Martinho Afonso, que foi levado em triunfo por toda a vila, dando-se os mais frenéticos vivas, muitos presentes e grande número de garrafas de vinho (de que o almocreve pelos vistos era grande amador) dizendo todos «Escorropicha!», e ele escorropichava, e disto lhe ficou a alcunha de Escorrupicha.

Passados oito dias das mais estrondosas demonstrações de jubilo e agradecimento, se foi o bom do meu amigo Escorrupicha seguindo a sua jornada, coberto de presentes, coroado dos louros da vitória e com um nome imortal que irá de geração em geração até à mais remota posteridade.

O pároco ficou pedindo em todos os Domingos um Padre-Nosso por Martinho Afonso, o destruidor da Cabicanca.

Advirto, porém, aos que forem a Aguiar da Beira e tiverem amor às costelas, que não falem ali na Cabicanca nem no Escorrupicha, senão, depois não se queixem!»

Embustes

Não tenho conhecimento de embustes envolvendo a Cabicanca, isto é, não sei de provas forjadas da existência desse ser fantástico ou se a sua lenda é uma narrativa completamente inventada ou não. Porém, pergunto porque os habitantes de Aguiar da Beira, segundo o Pinho Leal, eram tão hostis a referências à Cabicanca e ao Martinho Afonso (pelo menos no séc. XIX) – será que sentiram-se aproveitados por um «herói» que sabia bem do que se tratava, mas que aproveitou para cair nas boas graças de uma população que só mais tarde teve consciência de que, afinal, não havia razões para temer um ser que não era nada sobrenatural?

Pistas materiais

Não tenho conhecimento de pistas concretas deixadas pela Cabicanca.

Análise criptozoológica e cultural

Há relatos, originários de diversas partes do mundo e de várias épocas, incluindo a época atual, de aves de espécies por identificar ou reconhecidas pela ciência oficial que são avistadas fora da sua área de distribuição natural; a Cabicanca é uma dessas aves fantásticas, cujo relato da sua aparição há séculos se tornou uma lenda.

Ao que parece, sabe-se o tipo de animal que era a Cabicanca: é identificada como uma cegonha na versão do Pinho Leal e noutras versões da tal lenda, a nidificar numa alta estrutura humana como de esperado (principalmente se for uma cegonha-branca [Ciconia ciconia]); também o bico muito grande, o pescoço muito magro e as pernas compridas que a versão presente no Portugal Antigo e Moderno refere são características típicas das cegonhas (não me debruço sobre a referência à fealdade desse ser, pois as opiniões sobre a beleza de isto ou daquilo variam conforme os espaços geográficos e as épocas). Mas considero menos pertinente saber que espécie de ave exata era a Cabicanca do que outra questão: porque uma população humana ficou horrorizada com a presença de um animal cujo tipo é conhecido pelos homens desde tempos imemoriais, horror esse que impediu os habitantes locais de se dedicarem aos seus afazeres costumeiros? Como a nidificação de uma cegonha na terra deles fez com que pensassem que o fim do mundo estava próximo?

É deveras surpreendente a repulsa e o pavor que os habitantes de Aguiar da Beira tenham demonstrado à Cabicanca e à sua presença, uma vez que a cegonha é um tipo de ave com conotações positivas na cultura judaico-cristã no geral: representante do bom augúrio, rosto da fertilidade e do nascimento, símbolo da piedade filial e familiar, adversária das forças de Satanás… Mas a cegonha nem sempre tem tido uma imagem assim tão boa na mesma cultura: por exemplo, ela é considerada impura e imunda no Levítico 11, 18-19, e dizia-se que os exemplares adultos com saúde e força de um bando, antes da partida para África, se reuniam com vista a matar os elementos que, por força da juventude e/ou por maleitas, não voassem bem para que não retardassem a viagem migratória.

Porém, essas tradições orais e escritas pouco abonatórias sobre a cegonha não explicam as razões pelas quais os aguiarenses tiveram medo e quiseram estar longe da Cabicanca!

Hipóteses naturais

A meu ver, o mais provável é que esta lenda tenha sido uma comédia de enganos, enganados e (um) enganador na realidade: a Cabicanca não passou de uma cegonha-branca que nidificou na agora inexistente Igreja de São Pedro, numa vila cujos habitantes, pelos vistos, não sabiam o que eram cegonhas – quanto muito, talvez já tivessem ouvido falar delas, mas sem nunca terem visto uma –; como aquela ave, apesar de não se meter com ninguém, era diferente dos animais que conheciam (a começar pelo seu bico comprido), os habitantes de Aguiar da Beira, com o típico medo dos homens perante o desconhecido, interpretaram a sua aparição como um mau presságio e sinal de que os tempos estavam a mudar… Para pior – se o pároco local, uma das mais importantes figuras da comunidade e autoridade na resolução dos problemas que a afligiam como se sabe, foi literalmente pregar para outra freguesia, possivelmente tão ou até mais amedrontado do que os paroquianos que deixou, então isso significava que não havia mais nada a fazer nem motivos para fazer mais coisa nenhuma! Enquanto isso, o Martinho Afonso, um profissional que transportava mercadorias em animais de carga e, portanto, percorria vários sítios, reconheceu a Cabicanca como uma cegonha-branca, espécie de animal que deve ter visto noutras paragens; como viu que a população de Aguiar da Beira receava uma espécie de ave que ele conhecia, em fez de informar os habitantes locais do que era aquilo, pegou na sua – passo a citar de novo o Pinho Leal – «espingarda, arma recentemente descoberta» (o que coloca a ação da dita lenda na segunda metade do séc. XV ou no séc. XIV, alturas em que se começou a fabricar espingardas em Portugal – a novidade que as armas de fogo eram então pode tê-lo ajudado a impressionar os aguiarenses – e as pessoas praticamente só viajavam por motivos profissionais ou religiosos), e matou a Cabicanca; ao Martinho Afonso só restou continuar a ser o «herói» de uma população crédula, pois certamente não sairia daquela vila cheio de brindes e coberto de fama após dias de celebrações se dissesse que tinha abatido um animal de uma espécie praticamente inofensiva para os homens – talvez isso explique a raiva dos aguiarenses no passado às menções desse almocreve e da Cabicanca, pois só devem ter sabido de que foi escusado matar uma ave que injustamente acusaram de ser emissária das forças das trevas após pelo menos alguns Pais-Nossos dominicais mandados então rezar pelo pároco!

Porém, vamos agora supor que em Aguiar da Beira já se conhecia a cegonha-branca quando a Cabicanca lá nidificou. Presumindo que não tenham havido tradições locais negativas sobre essa espécie de cegonha de antemão, e que a Cabicanca não era uma cegonha-branca com alguma diferença física das demais que causasse repulsa (por exemplo, malformação de nascença) – o que pode ter sido a fealdade referida neste caso –, que espécie era a ave, também com – passo a citar novamente o Pinho Leal – «o enorme bico, o esgalgado pescoço, as longas pernas», que foi abatida pelo Martinho Afonso então?

Outra hipótese que ponho em cima da mesa é que a Cabicanca era uma cegonha-preta (Ciconia nigra), a outra espécie de cegonha naturalmente existente em Portugal. Ao contrário da cegonha-branca mais conhecida, trata-se de uma espécie de cegonha menos abundante no nosso país, onde encontra-se principalmente em certas zonas raianas, e que evita ao máximo áreas humanizadas, preferindo nidificar em zonas escarpadas ou muito arborizadas com muitos cursos de água e sem grande presença humana. Mas essas preferências de nidificação tornam difícil de imaginar uma cegonha-preta a fazer o ninho numa vila; por isso, considero mais provável ainda outra hipótese.

Talvez a Cabicanca tivesse sido uma ave de uma espécie de Ciconiidae que não ocorra naturalmente em Portugal; neste caso, inclino-me para o marabu (Leptoptilos crumeniferus), pois a sua envergadura, muita maior do que a da cegonha-branca, na certa chamaria demasiado a atenção no Interior de Portugal há séculos. Mas se assim foi, o que fazia um marabu longe das planícies cálidas de África, o continente onde essa espécie ocorre naturalmente? Como há registos de aves cujas espécies ocorrem naturalmente num continente e que conseguem voar para outro, mesmo que acabem por atravessar um oceano inteiro, muitas vezes ajudadas por correntes de ar em altas altitudes, e que até chegam a tentar nidificar no continente de chegada no mínimo, se calhar a Cabicanca era um marabu que voou para muito longe da área de distribuição geral da sua espécie e chegou a Aguiar da Beira, onde nidificou, para horror de uma população que nunca tinha visto tal espécie, e acabou por ser morto a tiro. Ou quiçá era uma ave saída do cativeiro que tentou estabelecer-se definitivamente em Aguiar da Beira: dado que a ação da tal lenda deve ter-se passado na Época dos Descobrimentos, altura em que, como está documentado, vieram para o território que é o Portugal atual (Portugal Continental, Madeira e Açores) animais de diversas espécies provenientes das colónias portuguesas no continente africano – um prestígio comum para quem era gente de posses –, um marabu foi trazido de África para, por algum motivo, ser largado na Natureza ou fugir do cativeiro ao fim de algum tempo. No entanto, como contra-argumentos para a hipótese da Cabicanca ter sido um marabu ou um exemplar de outra espécie de Ciconiidae que não ocorra naturalmente em Portugal, as aves deste género, caso saíam do cativeiro na Europa, dirigem-se para Sul e não tentam fazer o ninho em paisagens e climas tão diferentes de onde vivem os seus congéneres em estado selvagem e, até onde sei, é pouco provável que nidifiquem em áreas humanizadas (embora o marabu possa ser encontrado nesse habitat, em África, pelo menos para se alimentar).

Bibliografia

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