- Introdução – a razão de ser de uma investigação:
No GIFI desenvolvemos, há muitos anos, estudos que, de uma forma ou de outra, têm como objecto a magia.
Foi, em boa medida, pela sua componente de religião mágica – ou, talvez melhor, de religião que assume a magia como elemento determinante da sua práticai – que nos finais de 2006 estabelecemos os primeiros contactos com o paganismo actual, através da PFI Portugal.
Começámos por organizar um dossier básico acerca do politeísmo e do neopaganismo, o qual veio a ser aprofundado através de vitais informações e esclarecimentos obtidos junto da PFI, muito em particular pelos ritos que fomos autorizados a assistir, em Foz Coa (2008, ritual solsticial de Verão, de tipo ibérico) e Sintra (2010, Alban Eilir, celebração druídica da Primavera).
Concluída esta nossa fase – perdoem-nos o exagero – de iniciação a estas matérias, havia que definir uma linha de investigação, um verdadeiro protocolo científico que permitisse dar corpo e valorizar, do ponto de vista do estudo, a nossa abordagem ao paganismo. De outra forma cairíamos, porventura, numa estéril análise descritiva de ritos.
Foi por isso que na reunião anual do GIFI, realizada a 20 de Novembro de 2010, se decidiu fazer evoluir a nossa investigação para a comparação entre um rito pagão historicamente conhecido e as actuais práticas neopagãs.
Pareceu-nos, ainda, que este projecto seria adequado para se procurar descortinar quanto do neopaganismo é uma revivescência de cultos pagãos historicamente documentados e em que medida corresponde a formas totalmente novas, contemporâneas portanto, de prestar culto religioso a divindades pagãs.
O projecto foi apresentado à PFI em Março de 2011, tendo a nossa base de trabalho sido considerada viável e relevante, pelo que nos veio a ser proposto tomar como ponto de referência as Floralia. Também nessa reunião, foi-nos manifestado o interesse da associação cultural pagã em aprofundar os seus estudos sobre as Maias, festividades populares celebradas em algumas localidades do país no início de Maio, particularmente tendo em vista a festa da Divina Santa Cruz, que se realiza em Monsanto, Beira Baixa.
Ao ritmo que a nossa vida permite, 2011 foi um ano de estudo essencialmente bibliográfico, em 2012 avançou-se para o trabalho de campo e em 2013 passou-se à fase de compilação de dados para efeitos de um relatório final e, como adiante melhor se verá, estamos ainda a tentar ir o mais fundo que podemos na busca dos vestígios de uma consciência religiosa ancestral, que poderá muito bem ser a matriz que, cientificamente, permitirá descortinar a essência dos ritos que escolhemos como objecto da nossa atenção.
Mas não avancemos rápido de mais. Primeiro há que dar conta, necessariamente de forma sintética, da informação recolhida pelo GIFI acerca das Floralia.
- As Floralia romanas:
Uma das vantagens da base comparativa delineada para esta investigação é o facto de dispormos de fontes históricas directas oriundas da antiguidade, relativamente à forma como as Floralia eram celebradas em Roma. A fonte principal é a obra “Fastos”, de Publio Ovídio Nasão.
Estas festividades eram dedicadas à Deusa Floraii, divindade das flores e da Primavera, havendo notícia que se celebraram em Roma desde 238 a. C., tratando-se de um culto de fertilidade.
A título de curiosidade, constatámos que em Roma se continuam actualmente a assinalar as Floralia, tudo leva a crer que numa tónica estritamente turística.
As celebrações a Flora ocorriam todos os anos e eram realizadas entre 28 de Abril e 3 de Maio, incluindo jogos (ludi florali) e espectáculos teatrais de farsa e mímica. As pessoas vestiam roupas coloridasiii e os templos eram decorados com flores e outros símbolos de fertilidade.
De referir que as prostitutas de Roma consideravam as Floralia como a sua celebração.
Impressivamente, Ovídio dá-nos nota do tom e sentido destas festividades, o que nos parece poder ser sumariado pelas seguintes passagens dos “Fastos”:
“
Sim; mas o circo alegre aos nus folguedos
é Maio que o franqueia, e que entre aplausos
dá no teatro ao vencedor a palma.
um pouco se desenrugue austera fronte;
o que é lícito ao circo, o seja aos versos.
“
Assim assiná-la a libertação dos corpos, nus, e a teatralidade das festas de Maio.
“
Tentava perguntar-lhe o porque havia
tão lasciva soltura em suas festas;
porque eram jogos seus mais livres que outros.
Mas acudiu-me logo ao pensamento
ser deusa jovial, e cujos mimos
com o prazer, as delícias se entrelaçam
Florente coroa nos guarnece as frontes;
a mesa do festim tapetam rosas;
“
A licenciosidade das Floralia romanas, explicada pelo carácter jovial e fecundo da deusa.
“
O porque afluem lá venais belezas
facilmente se explica: há divindades
tristes, austeras, de lições profundas;
esta não; esta admite em seus festejos,
esta chama a seus júbilos, a plebe;
exorta a aproveitar-se a mocidade,
e onde a rosa caiu nos mostra espinhos.
“
Cá está a explicação de Ovídio para a presença ostensiva nas festas das prostitutas da cidade. A felicidade e a leveza de Flora a todos admite, ainda que, como diz o autor, a beleza de uma rosa não evite os seus espinhos.
Valerá a pena anotar que a teatralidade nas festas de Maio ter-se-á mantido em algumas regiões da Europa durante a Idade Média, nomeadamente nos “Miracles de Nostre Dame par personages”, escritos e representados em Paris no decurso do século XIV, em festividades celebradas no dia 1 de Maioiv.
Em suma, tratando-se de uma festividade primaveril, sob o signo da fecundidade e adornada por flores, em Roma o carácter agrário da festa parece totalmente ausente, substituído pelo predomínio do corpo, do prazer, da libertação lasciva, uma festa de alegria, com roupas coloridas e grinaldas nas cabeças, mas na qual as representações públicas teatrais surgem como veículo temporário do tratamento igualitário dos habitantes da urbe, plebe incluída, e não propriamente como uma celebração da fecundidade natural.
- As Floralia celebradas pela PFI, nos arredores de Sintra, a 7 de Abril de 2012:
As Floralia, tal como foram interpretadas pela PFI, constituem um rito a Atécina, deusa do panteão lusitano, da terra e dos seus frutos. Também é referida como “Atégina”, “Ataecina” e “Ataegina”, sendo possível que o seu nome tenha origem céltica, relacionando-se com “fogo” e “noite”.
Conhecem-se registos históricos em lápides e em bronze, contendo inscrições romanas. Segundo as inscrições epigráficas, a deusa relaciona-se com Turóbriga, localidade da Bética, onde terá tido um grande santuário.
O seu culto situar-se-ia nas bacias oriental e ocidental do Guadiana e entre o curso Norte desse rio e o Tejo, com uma inscrição encontrada já na bacia do Guadalquivir, extensão de território que torna o culto a Atécina muito importante.
Foi identificada com a deusa romana Prosérpina, cujos atributos se referem à fertilidade agrária. Por força desta identificação, Atécina recebe igualmente atributos de deusa infernal. Esta relação não é, no entanto, pacífica entre os autores, sendo nomeadamente disputada por José D’Encarnação. Outros estudiosos do tema admitem a identificação entre Prosérpina e Atécina pelo respectivo valor infernal e não pelo agrícola, chegando a admitir Endovélico e Atécina como um par divino, nesse contexto infernal. Era também, para alguns, uma deusa médica, o que para José D’Encarnação se encontra insuficientemente provado.
Obviamente que neste rito, tendo como objecto a frutificação, é a relação com a fertilidade agrária que sobressai entre os atributos da deusa.
Na lógica do neopaganismo, o ritual foi organizado pela PFI numa procura da ancestralidade viva, retirando referenciais a esse carácter ancestral das festas populares, mas tendo em vista a criação de um ritual contemporâneo, que acompanhe a renovação das mentalidades e das culturas.
Por opção expressa, o rito encontrou o seu mote na ancestralidade rural, ibérica, deixando cair um pouco as Floralia tal como se cultuavam na antiguidade romana.
Segundo nos foi explicado, a preparação do local onde ia ser realizado o rito visa acordar a terra e os menires. Neste tipo de rituais não há, como noutros que já presenciámos, a abertura dos portais do céu, pois quem os vai abrir é a força emanada do menir
Os participantes no rito a Atécina formaram em duas filas, mulheres à esquerda e homens à direita, avançando em conjunto ao som do canto feminino até a entrada do recinto sagrado, no campo de menires, onde eram aguardados pelos sumo-sacerdotes.
No campo ritual as mulheres seguraram, em fila, uma fita vermelha, enquanto os homens fizeram o mesmo, com uma fita amarela, posto o que sucessivamente se procedeu às oferendas a deusa, no menir principal. As cores correspondem ao sexo, sendo o homem o Sol e a mulher a Terra.
São, neste caso, os homens que oferecem a Atécina os produtos do labor do campo, vinho, leite, queijo e pão. As oferendas são colocadas no menir, em alguns casos especificamente num dado orifício, que pelos cultuantes é considerado a “boca do menir”, uma concavidade existente em todos os “menir de oferenda”, muito embora em certos casos a mesma se encontre na parte superior da pedra sagrada.
A deusa foi invocada pela Suma-sacerdotisa, chamando o poder da terra para propiciar a frutificação das colheitas, para conforto dos homens e alimentação do gado. Foi recorrente a referência ao “bom curro”, numa linguagem antiga que os oficiantes utilizam várias vezes ao longo do ritual, para acentuar os arcaísmos, como elementos de ligação religiosa, de religio, às tradições do passado
Todo o rito é pontuado por cantos, pelo tocar dos adufes, pelas deambulações circulares ao menir principal e pelas preces, individuais e colectivas.
Procedeu-se, ainda, a bênçãos aos casais e às crianças presentes.
Anote-se que neste ritual não há um fechar de portais, como noutros ritos da PFI que já presenciámos. Há apenas um despedir da deusa Atécina, que no campo de menires está no seu próprio local. É chamada, durante a preparação e no próprio rito, despertada, permanecendo depois no sítio após o encerramento do rito. Mais uma vez de acordo com o que nos explicaram, quando os deuses são invocados noutro local, mediante a abertura dos portais do céu, é depois necessário proceder ao rito que visa o seu encerramento
Terminado o ritual, seguiu-se a refeição comunal, em ambiente alegre e descontraído.
Em suma, assistimos a um rito fortemente agrário e, nesse sentido, ancestral, em que o poder da terra, através da deusa Atécina, é magnificado no terreiro sagrado pelos menires, sendo as mulheres as intervenientes principais, descalças, na mediação com o sagrado, enquanto os homens se apresentam enquanto ofertantes dos produtos do trabalho agrícola e da criação pecuária, lançando as suas preces à deusa na expectativa da frutificação, da renovada revelação do poder fecundo e criador da natureza, do qual depende a vida e o desenvolvimento das comunidades humanas.
É um rito de celebração, de festejo e de alegria. Os participantes apresentam-se felizes, cantando e dançando, crendo no poder criador fecundo da terra e não como peticionantes amedrontados de uma qualquer graça, perante o poder imenso da divindade.
Parece-nos lícito dizer que, em rigor, com as Floralia romanas o rito neopagão apenas tem em comum o contexto no ciclo anual, o objecto e o sentido último da celebração sagrada, bem como as grinaldas de flores, pois nada mais do que as fontes históricas revelam da herança da antiguidade clássica surge revelado no rito neopagão a que tivemos oportunidade de assistir.
As Maias e a festa da Divina Santa Cruz, em Monsanto:
Pensámos que será curioso e, mais do que isso, ilustrativo iniciar a abordagem acerca da vertente do nosso estudo relativa às Maias com uma transcrição do texto da senhora D. Maria Peregrina de Souza, que consta nas páginas 236 e 237 do terceiro volume da versão portuguesa dos Fastos de Ovídio, organizada por António Feliciano de Castilho, em edição de 1862:
“
Dizem, e assim parece, que das florais nos ficou o costume de engrinaldar as portas e janelas no 1º de Maio. Vai isso caindo em desuso, mas não de todo. Nas aldeias (e na classe humilde do Porto) faziam grinaldas e ramalhetes de flores diversas, em que predominavam infalivelmente as maias (flor da giesta) e as punham nas portas e janelas. Em pequena perguntava eu o que isto significava, e me diziam as velhas: É para não entrar o Maio em casa. Hoje só dizem os que ainda conservam essa usança; é costume.
Não sei se este reflexo das florais ainda aparece em todo o reino.
Para desarraigar os povos do paganismo, e os afeiçoar à religião cristã, dedicou a Igreja o mês de Maio à Virgem Maria, e mudou em festejos religiosos os folguedos mitológicos. No primeiro Domingo de Maio, há, em algumas igrejas, em que se festeja Nossa Senhora, o costume de distribuir pelo povo raminhos de flores, e enquanto se distribuem, lançam dois meninos folhas de rosas sobre o povo. A esta festa se chama a festa da rosa.
Os adornos floridos, ou maias (que assim lhes chamam) com que o povo enfeita as suas moradas no 1º de Maio, creio que foram olhados como coisa de pouca monta, ou ficou sendo como um festejo à Rosa de Jericó. E também muitas rosas de Jericó se entrelaçam nas maias.
“
Assim se conclui que já na segunda metade do século XIX era obscura a efectiva raiz tradicional e histórica dos cultos de Maio, que ainda assim as populações continuavam a realizar, essencialmente em meio rural, ano após ano.
A temática dos cultos de Maio em Portugal é muito vasta, abrangendo exemplos um pouco por todo o país, entre os que ainda se verificam e aqueles de que apenas temos memória histórica, o que, naturalmente, vai muito para além do âmbito desta nossa intervenção.
Por simplicidade expositiva e para emprestar rigor científico à nossa exposição, damos a palavra a Ernesto Veiga de Oliveira, que relativamente à relação entre as Floralia, os cultos pagãos e as suas prevalências nas festividades populares do nosso país, anota o seguinte:
“O parentesco entre as celebrações actuais do Primeiro de Maio e estas festividades é, porém, muito problemático e não pode estabelecer-se, termos gerais; as Florália eram em Roma, e os pormenores do seu cenário cerimonial pouco têm que ver com pelo menos muitas das manifestações das nossas “Maias”, sendo difícil de se admitir entre umas e outras uma relação de derivação global directa.”
“… a véspera do Primeiro de Maio corresponde à noite de Valpurgis, que a demonologia germânica medieval, deformando o culto de Santa Valpurgis, que a celebrava nesta data, certamente por herança da crença pagã nos espíritos nocivos do Inverno e da Morte de que era necessário purificar ritualmente a terra no início do ciclo agrário anual, povoou de bruxas invisíveis que andavam no ar e praticavam as suas obras infernais;…”
“…Na Escócia, a celebração, relacionada com as festas célticas do fogo, de Beltane, compreendia, além dessas fogueiras – onde parecem existir reminiscências de sacrifícios humanos – a preparação do bolo cerimonial e a sua manducação;…”
“É portanto possível que todas estas formas bebam a sua origem em complexos rituais próprios de remotíssimos cultos agrários, dos quais derivaram as próprias festas romanas e célticas,…”
Na nossa investigação, pelas razões anteriormente referidas, optámos por estudar a festa da Divina Santa Cruz, que se realiza anualmente em Monsanto, na Beira Baixa. A data exacta de celebração deveria ser 3 de Maio, mas na prática ocorre sempre no primeiro Domingo do mês, por óbvias razões práticas inerentes à disponibilidade das pessoas, monsantinos e visitantes, que naquela ocasião se deslocam à “aldeia mais portuguesa de Portugal” em assinaláveis números.
De toda a forma, quando o primeiro Domingo de Maio calha noutra data, a 3 de Maio é sempre feita uma romaria de subida ao castelo, por um grupo de residentes, ao qual se juntam alguns forasteiros – assistimos ao rito em 2017. Os passos da subida e o lançamento final do pote são em tudo semelhantes, não se registando, de toda a forma, sinais adicionais de mistério. Resta um sentido mais genuíno e comunitário, mostrando que a celebração da memória de Monsanto não depende, nem se resume, às festividades publicamente organizadas.
A origem lendária da festa remete para a história de um cerco que teria atormentado Monsanto durante sete anos. O espaço de tempo é patentemente exagerado, mas fixa-se no chamado número da criação, que como se sabe tem fortíssima carga simbólica.
Não se sabe ao certo quem seriam os sitiantes – romanos, mouros ou outros -, sendo assim obscura a época histórica a que a lenda se refere, o que, de toda a forma, resulta indiferente para o teor e sentido da mesma, até porque a trama não é sequer original, por existirem relatos lendários idênticos ou semelhantes noutras localidades do país.
Podemos dizer, correndo o risco de macularmos o rigor científico, que será um exemplo prático, local, de uma lenda-tipo, bem presente no imaginário português.
Desesperados pelo espectro da fome, pois já só dispunham de uma vitela e de meio alqueire de trigo, decidiram os habitantes de Monsanto alimentar o animal com todo o cereal que restava, dando-lhe ainda bastante água, posto o que o atiraram das muralhas do castelo.
Os sitiantes, vendo o cadáver do vitelo com as entranhas inchadas à mostra, evidenciando o trigo com o qual tinha sido muito recentemente alimentado, concluíram que a praça-forte continuava provida de grande quantidade de mantimentos, tendo levantado o cerco.
A festa anual celebra esta vitória dos habitantes de Monsanto. Segundo as descrições constantes da bibliografia consultada, tradicionalmente as mulheres e raparigas subiam ao castelo, cantando e dançando, levando à cabeça potes brancos, decorados e cheios de flores e levando nos braços bonecas, chamadas marafonas. Depois, atiravam os potes das muralhas, para os lados Oeste e Norte. Ao final do dia regressavam à povoação, cantando e dançando, deitando depois as marafonas nas suas camas “… que assim não lhes caíra o raio em casa.”v.
Maria Leonor Carvalhão Buescovi relaciona a festa da Divina Santa Cruz com os jantares do Espírito Santo, típicos de Monsanto e de outras terras beirãs, nos quais o quinto prato, que vinha para a mesa oculto, trazia apenas flores no seu interior, possivelmente correspondendo simbolicamente à transformação do pão em flores, no milagre da Rainha Santa. Recorde-se que foi a aragonesa Rainha Santa Isabel que introduziu em Portugal o culto ao Espírito Santo.
A festa é relacionada pela autora com os jantares por força da imolação do bezerro, sendo que este seria substituído pelo pote, enquanto as flores ocupariam o lugar do trigo referido na lenda.
“… o lançamento do pote repleto de flores visa purificar a terra e prepará-la assim para a coroação do Imperador e metamorfose mística do pão em rosas.”
Já Maria Adelaide Neto Salvado sustenta que as flores das antigas festas do Espírito Santo, em Monsanto, seriam antes “… um símbolo propiciatório da abundância do pão e um convite à partilha fraterna.”, sendo que, dizemos nós, tal significado faz todo o sentido por correlação com as festas da Divina Santa Cruz, tendo em conta a sua inclusão nos cultos de fertilidade típicos do ciclo agrário da Primavera.
As festas, tal como às mesmas assistimos em 2012 e 2013, englobam todo o fim-de-semana, incluindo diversas iniciativas culturais, artistas e de enfoque turístico, com amplitudes diversas conforme os orçamentos de que em cada exercício anual dispõem as autarquias locais.
Boa parte dos festejos é, actualmente, pontuada por uma lógica medieval e, especificamente templária, que manifestamente não interessa ao nosso tema.
Do carácter ancestral restam, essencialmente, as refeições comunitárias, em todo o caso servidas actualmente em restaurante improvisado, mas rigorosamente situado nas imediações do antigo forno comunal, e as festividades de Domingo, incluindo a romaria ao castelo e o lançamento do pote.
Pelas treze horas há missa solene na Igreja Matriz de Monsanto. O padre da paróquia, cónego Vítor Vaz, centra a sua homilia no Dia da Mãe, na celebração de Santa Maria que liturgicamente ocorre naquela data. As suas referências às festas são genéricas e centradas no que chama a “festa de Nossa Senhora do Castelo”, apenas ganhando brilho e carácter incisivo quando faz referência à herança templária.
Contudo, a tradição popular está representada no próprio templo cristão, durante a liturgia, pois o Rancho Folclórico de Monsanto, trajado a rigor, encontra-se perfilado atrás do altar-mor, sob o qual se encontra o pote.
O pote é o elemento simbólico fulcral destas festas populares, tendo alegadamente a sua origem, como se viu, na lenda do cerco ao castelo de Monsanto e, nesse quadro, representando a vitela sacrificada para salvação da localidade.
A senhora D. Lucinda é quem desde 1995, no âmbito do Rancho Folclórico de Monsanto, faz e transporta o impressionante pote, decorado com um exuberante arranjo de ramagens e flores. É por demais evidente o tema das Floralia, a celebração da fecundidade, sendo muito menos clara, senão mesmo obscura, a referência simbólica à lenda do vitelo.
Quando a abordámos, explicou-nos que é usado um pote de barro caiado de branco, adornado – em boa verdade submerso – pelo arranjo floral.
Disse-nos ainda que quando era pequena cada localidade vizinha fazia também o seu pote. Depois passou a ser feita uma bezerra de madeira, decorada com flores e ramagens. No entanto a pessoa que a construía morreu de acidente, razão pela qual actualmente só fazem o pote nos termos que tivemos oportunidade de observar.
Após a missa, a população e os visitantes reúnem-se no largo fronteiro e na rua que ladeia a igreja matriz.
O cortejo para o castelo organiza-se com os membros do Rancho Folclórico de Monsanto à cabeça. Primeiro um homem com o estandarte do rancho (em 2013 acompanhado de um rapaz), depois uma mulher vestida de negro, com o troféu da “aldeia mais portuguesa de Portugal”, a seguir a portadora do pote, logo depois três mulheres lado a lado, as das pontas com marafonas nas mãos, enquanto a que vai ao centro levava um cajado e uma cestinha, depois os rapazes e as raparigas do rancho, eles à esquerda e elas à direita. Por fim outros membros, femininos e masculinos, do coro, um tocando acordeão, algumas mulheres rufando os seus adufes.
A seguir a população integra o cortejo, pelo menos aquela que segue ordenada com o rancho, pois são muitos os que se adiantam, tirando fotografias e filmando a romaria, bem como há diversos grupos esperando o cortejo em locais estratégicos ou julgados mais propícios, ao longo do percurso para o castelo. O cónego segue integrado na multidão, quase anónimo e sem vestes sacerdotais.
Em 2012 mais atrás vinha o Rancho Folclórico de Penha Garcia, retomando uma tradição anterior de participação nas festas das populações de grupos oriundos das localidades vizinhas.
Subindo pelas estreitas e sinuosas ruas, misturado com a multidão, o cortejo chega ao caminho do castelo, seguindo depois pelas ingremes veredas até à fortificação. Sobem cantando, batendo palmas, com pequenas paragens pelo longo e acidentado caminho. A portadora do pote aguenta estoicamente o seu peso à cabeça, ao longo de todo o percurso, ao calor vespertino dos inícios de Maio.
Já dentro da cerca amuralhada param em frente à porta principal da capela de Nossa Senhora do Castelo. A portadora do pote, com o mesmo sobre a cabeça, trava o passo mesmo à porta do templovii, juntando atrás de si as mulheres do rancho que cantam um tema específico. Enquanto dura a música, a portadora do pote permanece à porta, meneando o corpo numa dança, sem mover os pés.
Nem sempre é fácil compreender a letra da música, sendo que (com apoio das versões constantes em bibliografia que encontrámosviii, em boa medida não coincidentes com a versão que registámos em Monsanto) conseguimos, por ora, pelo menos registar:
Oh Divina Santa Cruz
E à vossa porta cheguei
Tantos anjos me acompanhem
Como de passadas dei.
Oh Divina Santa Cruz
E à vossa porta é bem-vindo
Deixai ver no vosso rosto
Como no espelho fino
Oh Divina Santa Cruz
E tem uma fita na testa
Que lhe puseram os anjos
No dia da sua festa
(cada parcela da letra é repetida uma vez)
Apenas quando a canção termina, a portadora do pote avança e coloca-o sob o altar.
Num hiato algo surpreendente, a celebração muda de um momento para outro, de tom e de contexto. O padre paramenta-se e passa a celebrar-se Santa Maria do Castelo, cuja imagem é transportada em procissão numa ampla deambulação circular em volta da capela, no sentido oposto ao dos ponteiros do relógio, enquanto os participantes do rancho e outros populares entoam canções religiosas católicas, totalmente diversas das cantadas durante os demais momentos da romaria.
Não vimos que a portadora do pote tenha integrado este acto religioso cristão.
De seguida, são apresentadas as danças populares, no centro do terreiro do castelo.
Terminado a actuação, a portadora do pote e as demais mulheres do rancho voltam, então, a realizar o curioso rito, a porta da capela, sempre ao som da mesma canção. Depois, os membros do rancho, seguidos por muitos dos presentes, avançam em romaria para a torre de menagem, a parte mais alta da fortaleza, retomando em parte a sequência original do cortejo, sempre tocando e cantando.
Chegados ao topo da fortaleza, virados a Oeste, após um compasso de espera para todos se colocarem devidamente, com muitas pessoas por perto, enquanto outros observavam o culminar da romaria noutras partes da muralha e a partir dos rochedos situados nos arredores, com vista privilegiada para o momento alto da cerimónia, foi finalmente lançado o pote, o qual rolou rapidamente pelas altas fragas abaixo, estatelando-se, parcialmente intacto, numa zona mais plana do declive.
A portadora do pote, em especial em 2013, esteve durante um longo espaço de tempo com as mãos bem assentes na pedra das muralhas, olhando a distância, uma vez mais acompanhada pela canção entoada à porta da capela do casteloix, até que finalmente lançou o pote, não sem antes, em ambos os anos, ter ficado com algumas flores retirados do arranjo, que acabou por oferecer a alguns dos presentes, enquanto todos cantavam durante mais algum tempo, como que celebrando a conclusão da romaria.
Como vimos, o cortejo processional culmina no local mais alto do castelo, o que fica mais perto do céu, simbolicamente mais perto dos deuses. É isso mesmo o Monte Santo.
A localização do lançamento do pote na direcção Oeste da zona amuralhada não faz qualquer sentido por correlação com a lenda do cerco, pois não seria ali certamente o arraial dos sitiantes. Já a direcção Norte, em que há notícia de anteriormente se lançar também potes, correspondendo à porta principal da fortaleza e ao planalto fronteiro, o que já poderia corresponder ao local onde estaria o arraial do exército inimigo, referido na lenda.
Podemos, portanto, admitir como hipótese de trabalho que o rito de lançamento do pote tenha incluído, no passado, uma sequência correspondente à história mítica celebrada pelo povo nestes festejos anuais, enquanto o lançamento para Oeste, que prevalece, parece relacionar-se directamente com uma simbologia sagrada, por corresponder à direcção em que o Sol se põe. Muito embora nos dias de hoje o lançamento ocorra pouco depois do meio da tarde, podemos até especular com a possibilidade de anteriormente tal ocorrer apenas ao pôr-do-sol, quando os festejos se concluiriam.
As festas da divina Santa Cruz, mau grado o seu nome, afiguram-se actualmente como de carácter fortemente não cristão, em boa parte profano, centradas no rancho folclórico local e, ao menos durante recentes anos de abundância, no que aos dinheiros públicos diz respeito, na Câmara Municipal de Idanha-a-Nova.
A Igreja parece limitar-se a tolerar os festejos populares, tanto mais que as cerimónias religiosas (ou para-religiosas) ocorridas são extrínsecas aos festejos (reunião do capítulo neo-templário) ou naturalmente dominicais (a missa, se bem que em versão solene, abrilhantada por um coro).
Ainda que de forma inconsciente, o povo de Monsanto empresta ainda algum sentido de sagrado aos festejos, em particular na romaria para o castelo e durante a cerimónia de lançamento do pote.
Especulando de novo, o vitelo e o trigo, figuras centrais da lenda e elementos simbólicos do omnipresente pote, parecem constituir reminiscências de sacrifícios rituais de uma sociedade agrária arcaica. O rancho folclórico simboliza o grupo tradicional de homens e mulheres de Monsanto, a própria população da aldeia que historicamente integrava a romaria.
Já as flores, que dominam exuberantemente o pote, poderão constituir a evidência de uma ligação às Floralia romanas.
A lenda do cerco encobre o carácter sagrado da cerimónia, perante a Igreja, que se limita a tolerar o ritual, preferindo-lhe os mistérios Pascais, tal como fez questão de sublinhar o cónego Vítor Vaz durante uma das suas homilias, a que assistimos.
Podemos, ainda, interrogar-nos se alguém, de entre os participantes na romaria assume a posição do sacerdote. Parece que não, mas o que é certo é que a posição de destaque cabe às mulheres, o que é por demais evidente durante toda a romaria. Se descontarmos o porta-estandarte e a própria portadora do troféu da “aldeia mais portuguesa de Portugal”, afinal os elementos identificadores do rancho, em posição quase-institucional, quem claramente lidera toda a romaria são a portadora do pote, as mulheres que trazem as marafonas e demais elementos simbólicos, bem como, muito em particular, as adufeiras, que comandam a música e o canto durante toda a cerimónia.
Anote-se, por fim, que em Monsanto não há sinais da teatralidade e licenciosidade das Floralia romanas. Essa herança histórica, no que ao arranjo de flores diz respeito, parece surgir apenas, envolta em canções e danças, sublimar- aos olhos da Igreja? – no sacrifício ritual dos produtos do labor do homem, a vitelo e o centeio, bem como a apoteose do lançamento das flores do cimo das altas fragas.
- Conclusões:
A investigação realizada conduziu a que nos inclinemos, decisivamente, para uma das sub-hipóteses delineadas em protocolo: quer as Floralia, quer as Maias, são expressões dos mesmos cultos agrários ancestrais, plasmadas em épocas históricas muito distintas, com as diferenças inerentes ao intervalo de tempo histórico que entre elas medeia
Digamos que é patente o referencial antropológico comum, sendo que mesmo as Floralia neopagãs, realizadas em Sintra pela PFI, entroncam muito mais nessa lógica tradicional agrária, do que na licenciosidade e teatralidade das festas romanas, tal como se encontram retratadas nas fontes da época.
Em Monsanto verificámos que os aspectos das festas qualificáveis como cristãos se resumem à missa dominical solene, que antecede o cortejo para o castelo, e a aspectos, diríamos, colaterais das festas (como é o caso do capítulo neo-templário a que assistimos), sendo que os festejos e, em particular, a romaria resultam despidos de referenciais da Igreja católica.
Resta, de toda a forma, a interrogação sobre se para o povo de Monsanto a sua romaria, em particular a elaboração do pote, o rito inerente ao seu lançamento e as canções entoadas, constituem actualmente apenas uma memória de tempos passados, uma repetição anual de gestos repetidos, emulando os dos seus pais e avós, ou se resta ainda, directa ou indirectamente, uma consciência do seu significado profundo e, quem sabe, até da sua natureza sagrada.
(texto original de 7 de Fevereiro de 2016, revisto e aditado a 22 de Junho de 2021)
Bibliografia:
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– Cauvin, Jacques, “Nascimento das divindades, nascimento da agricultura – A revolução dos símbolos no neolítico”, Instituto Piaget, Lisboa, 1999;
-Citroni, M., Consolino, F. E., Labate, M. e Narducci, E, “Literatura de Roma antiga”, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2006;
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