A Quinta da Regaleira é um dos temas a que o GIFI – Associação Portuguesa para a Investigação se tem dedicado de forma mais sistemática, muito embora o trabalho de investigação, propriamente dito, se encontre interrompido desde o final de 2001.

O resultado dessa investigação encontra-se vertido num volume que, até à data, não conseguimos editar.

Ao longo de todo esse período de investigação, as hipóteses de trabalho colocadas foram muitas, mas as conclusões finalmente atingidas, que se encontram vertidas no volume concluído em 2001, apontam no sentido de que a Quinta da Regaleira é, essencialmente, um produto da época histórica da sua construção, representando uma visão mítica de Portugal em contraste com as sérias dificuldades por que o país então passava, sem qualquer relação histórica com ordens ou vias iniciáticas.

É evidente que a Regaleira se presta ao sonho, ao mito e, sem dúvida, ao esoterismo, por aquilo que é, bem como pelas emoções e sentimentos que desperta, invariavelmente, no visitante.

Mas sejamos prudentes. A interpretação simbólica é tarefa árdua e que exige um enorme rigor de raciocínio. O mesmo símbolo, em dois locais diversos ou em duas épocas distintas, pode ter sentidos completamente diferentes.

Não conhecemos qualquer fundamentação cientificamente válida que possa relacionar a Regaleira com vias esotéricas ou iniciáticas, sendo absolutamente manifesta a ausência de conexão de Carvalho Monteiro com a maçonaria, ao menos em Portugal e, muito em especial, à época da edificação da quinta.

O percurso que se propõe, passando pelo palácio da Regaleira, pela capela, pelos jardins e culminando nos subterrâneos foi concebido sem qualquer preocupação dogmática, esotérica ou religiosa, pelo que tem apenas como função abrir caminho às abordagens individuais preferidas por cada um dos participantes, se for o caso com contornos iniciáticos, as quais poderão certamente beneficiar da informação, rigorosa do ponto de vista histórico, que actualmente se encontra disponível sobre a quinta.

I – Enquadramento histórico:

Uma visita não é a oportunidade mais adequada para explanar, de forma abrangente, a informação histórica de que dispomos acerca da Quinta da Regaleira, do seu proprietário/edificador – António Augusto Carvalho Monteiro – e do seu cenógrafo/ arquitecto – Luigi Manini.

Aliás, tais dados históricos encontram-se já dados à estampa com elevado rigor, principalmente em escritos da autoria da Dr.ª Denise Pereira e da Prof. Doutora Regina Anacleto, ambas historiadoras.

Optámos, portanto, por apresentar apenas um quadro cronológico sinóptico, acerca da quinta, de Carvalho Monteiro, de Luigi Manini e, pontualmente, de factos históricos que se nos afiguram como pontos de referência essenciais para uma análise coerente desta temática.

II – Sequência da visita:

a. Introdução à visita:

A arquitectura da quinta, principalmente do palácio, da capela e do edifício das cocheiras, é classificável como revivalista, com elementos neo-manuelinos, neo-góticos, neo-renascentistas e, em alguns casos, mitigadamente neo-românicos.

Tendo em conta a época da sua construção, trata-se de uma opção estilística anacrónica em termos europeus, mas razoavelmente sincrónica no contexto português, pois se bem que o Palácio da Pena (para dar apenas um exemplo) seja cerca de meio século anterior, o revivalismo tardio deixou marca evidente no nosso país, porventura em resultado do influxo das reacções nacionalista (e, portanto, historicistas) à difícil situação política, social e económica que caracterizam o Portugal da viragem do século XIX para o século XX.

A simbologia presente na Regaleira, muito sinteticamente, pode enquadrar-se nas seguintes tipologias:

a) Manuelina- Embora com menos profusão do que, eventualmente, se poderia admitir à partida, encontramos as cruzes de Cristo, a esfera armilar, alguns cordames, efígies de navegantes das Descobertas e, mesmo, a “empresa” de D. João II: o pelicano alimentado as crias com a sua própria carne;

b) Cristã- Claramente marcada pelo catolicismo romano, de que Carvalho Monteiro era fervoroso seguidor, particularmente pelo culto mariano tão relevante na Europa do Sul e, marcadamente, em Portugal, encontramos sinais evidentes de um cristianismo algo místico (Santa Teresa de Ávila e, noutro sentido, Santo António) com traços de um certo maniqueísmo atribuível a Santo Agostinho;

c) Familiar e narcísica- Na quinta abundam as referências, de diversa ordem, à pessoa de Carvalho Monteiro, bem como vários elementos escultóricos que comprovadamente tiveram por modelo elementos da família (filhos e netos do proprietário), nomeadamente representados em quadros de felicidade pautados pelo contacto com a natureza;

d) Naturalista- São inúmeros os exemplos de figuras animais, que em nosso entender se relacionam directamente com o conservacionismo naturalista da época, praticado por Carvalho Monteiro ao longo da sua vida, nomeadamente pela participação activa na criação e gestão do Jardim Zoológico de Lisboa. Acresce a presença do extravagante e hiperbólico aquário da Regaleira;

e) Greco-romana- Embora como uma espécie de excepção (eventualmente atribuível à herança cultural de Luigi Manini), a mitologia greco-romana encontra-se na estatuária e decoração da parte baixa dos jardins, no painel de azulejos da estufa e, ainda que indirectamente, na decoração central da entrada dos Tritões, no troço superior dos túneis;

f) Enigmática- A alguns elementos da simbologia da Regaleira tem sido atribuído carácter esotérico. Na esmagadora maioria dos casos tais teses não resistem, em nossa opinião, ao escrutínio de uma observação crítica e apoiada na ciência histórica, como é o caso da representação Cristã de Deus que, logo após a entrada, se encontra na capela. De toda a forma, alguns outros elementos simbólicos merecem discussão, em particular a “boca ameaçadora” da fachada posterior da capela e as figuras de Santos, cuidadosamente orientadas, que decoram a torre do mesmo edifício.

Parece-nos particularmente curioso, para não dizer mais, que não se encontre na Regaleira qualquer referência simbólica ou imagética a Luís de Camões, quando é dado histórico incontornável que Carvalho Monteiro reuniu a que era considerada a melhor e maior biblioteca camoniana do mundo, tendo patrocinado diversas edições do e sobre o Poeta, bem como tendo fundado e animado diversas associações camionianas, tanto em Portugal como no estrangeiro.

a. O palácio:

Subindo o patamar dos deuses e atravessando o terreiro fronteiro à capela atingimos o palácio da Regaleira, o qual consideramos ter tido função estritamente residencial.

Valerá a pena registar algumas curtas notas acerca da utilização das diversas parcelas do palácio, à época de Carvalho Monteiro.

No andar térreo, o acesso principal ao edifício faz-se por um hall de entrada, em frente do qual se estende um longo corredor rectilíneo.

À direita do corredor, para quem entra, temos a sala de jantar, imediatamente seguida por uma copa, equipada com um elevador que permitia o transporte de alimentos e objectos a partir da cozinha.

Seguidamente, encontra-se um amplo hall que liga à varanda exterior e uma sala de estar.

Do lado esquerdo, sempre relativamente à entrada, encontrava-se originalmente a escadaria principal de acesso aos andares superiores, cuja supressão, por iniciativa de Waldemar D’Orey, nos deixa apenas observar, actualmente, o amplo salão do palácio.

Após o salão existia uma sala pequena, onde foi colocada, também por iniciativa de Waldemar D’Orey, a nova escadaria de acesso aos andares superiores do edifício.

Ao fundo do rés – do – chão encontra-se a sala de bilhar, profusamente decorada com imagens de carácter nacionalista e elementos heráldicos.

Também nesta divisão a obra de Carvalho Monteiro foi extensamente modificada, pois foram retirados os bancos de madeira, embutidos na parede, que permitiam assistir aos jogos de bilhar.

Para a memória fica ainda a notícia da existência de provérbios em latim pintados nas paredes do rés-do-chão, que hoje em dia não se encontram visíveis.

Por seu turno, o primeiro andar do palácio é composto pelos quartos da família. O quarto grande com terraço era o de Carvalho Monteiro e mulher, existindo ainda um quarto de vestir, decorado no friso junto ao tecto com frescos, de temática medieval, divisão essa com acesso à escada de caracol exterior.

A referida escada dá acesso ao segundo andar, directamente ao escritório de Carvalho Monteiro.

Nesse andar, as restantes divisões estavam destinadas ao alojamento das empregadas. Convirá aproveitar a oportunidade para esclarecer que os empregados do sexo masculino se alojavam na cave, que em parte funciona como andar térreo relativamente aos jardins, onde se encontravam igualmente a cozinha e as áreas de serviço.

No terceiro andar do palácio situava-se o quarto de engomar, equipado com pequenos tanques de lavar, bem como uma sala que dá acesso a um amplo terraço.

b. A capela:

A curta distância do palácio alcançamos a capela da Regaleira.

Em primeiro lugar, a capela não está orientada canonicamente, pois o portal não se encontra virado a Oeste, antes visando directamente o noroeste. Pela mesma razão, o altar da capela não se encontra a Oriente.

Julgamos que a orientação escolhida, no âmbito da construção da capela, teve claramente como intenção virar o seu portal para a entrada principal do palácio, encontrando-se os dois edifícios ligados por um caminho de terra.

No entanto, a imaginação do proprietário – edificador da Regaleira e /ou de Luigi Manini, introduziu na capela um factor, bem menos evidente, de orientação pelos pontos cardeais, que se detecta na torre sineira do templo, como melhor veremos adiante.

A arquitectura da capela denota uma forte inspiração manuelina, tratada ao gosto revivalista de oitocentos, sem que, no entanto, se possam detectar de forma evidente referenciais directos oriundos de edifícios quinhentistas portugueses.

No que se refere ao orago da capela da Regaleira, registe-se que Denise Pereira afirma que a capela “… foi erguida em honra de Nossa Senhora da Trindade.”.

A representação da anunciação, que se observa sobre o portal principal é encimada pela figura de Deus – Pai, em atitude de bênção. Uma tal representação fortemente antropomórfica de Deus, não sendo espécime único, é pelo menos uma opção figurativa menos comum nos templos católicos.

Na iconografia religiosa portuguesa a figuração humanizada de Deus – Pai encontra-se normalmente associada ao culto do Espírito Santo, nomeadamente em estatuária de madeira que enquadra nessa imagem antropomórfica de Deus insere a representação de Jesus, normalmente crucificado, bem como a pomba do Espírito Santo.

Trata-se da chamada trindade vertical, que surge em França desde o século XII sob influência bizantina, e que veio a gozar de grande popularidade no nosso país.

Valerá ainda a pena referir, se bem que de forma meramente especulativa, que a imagem de Deus –Pai, acima referida, é extremamente semelhante à da página 50 do livro “Os segredos da Cabala” de Eliphas Levi, originalmente publicado em França, numa única edição, em 1920, com base num manuscrito de 1861.

Nenhuma fonte nos indica que Carvalho Monteiro tenha tido acesso a elementos desse tipo, pelo que a ligação à Cabala permanece por demonstrar.

No vitral da rosácea, quando observado do interior do templo e ao nível do coro, encontra-se um triângulo, num céu sobre nuvens e rodeado por sete caras infantis, claramente representativas de anjos. Os sete anjos representam o número da criação, o que remete claramente para a divindade demiúrgica, a figuração do Universo como produto do poder do Altíssimo.

As duas estátuas de santos que ladeiam o portal representam Santo António de Lisboa e Santa Teresa de Ávila.

O jornal “Ecos de Sintra”, na sua edição de 6 de Setembro de 1945, afirma que as imagens de Santo António e de Santa Teresa de Ávila tiveram como modelo os filhos de Carvalho Monteiro, ali referidos como António e Teresa. O facto é que os filhos do proprietário se chamavam Pedro e Maria, o que torna duvidoso que tenham sido os modelos das estátuas

A neta mais velha de Carvalho Monteiro chamava-se Teresa, enquanto os demais netos se chamavam António, Francisco e Nazaré.

Tendo em conta a notícia documentada da utilização dos netos de Carvalho Monteiro como modelos das estátuas que compõem no palácio da Regaleira o conjunto da “rapariga dos pombos”, admitimos que também aqui tenham sido os netos a motivar a escolha destes dois santos para, de forma destacada, surgirem na decoração exterior e interior da capela.

Um pormenor curioso, registado também por Regina Anacleto, é o de a peanha da estátua de Santo António ser decorada por dois diabinhos alados, enquanto a de Santa Teresa ostenta dois anjos.

Parece evidente, como regista aquela historiadora, que estamos em presença de uma representação do bem e do mal, permanecendo, no entanto, por decifrar a razão pela qual neste caso a figuração masculina se associa ao mal e a feminina é referenciada ao bem.

Em nossa opinião, Santa Teresa de Ávila surge representada uma segunda vez na capela, sobre o telhado e próximo da torre sineira, onde aparece claramente em posição de êxtase, o que reforça a tese de que neste templo se pretendeu efectivamente assinalar a presença dos místicos no seio da Igreja Católica.

Na torre da capela encontramos quatro imagens de santos, escrupulosamente orientadas segundo os pontos cardeais, a saber e segundo a interpretação que propomos: Isabel de Portugal (ou Santa Francisca) – Oeste; S. Pedro Apóstolo – Norte; S. Jerónimo – Este; S. José (ou São Francisco) – Sul.

Francisco era o nome próprio do pai de Carvalho Monteiro e de um dos seus netos, enquanto o seu filho se chamava Pedro, afinal outro dos Santos representados na torre sineira da capela.

Quanto à dupla representação na referida estátua, atente-se no facto das figuras, seguindo a nossa interpretação, incluírem um apóstolo e primeiro Papa, um Doutor da Igreja e uma Santa com especial relevância na história portuguesa (se bem que aragonesa por nascimento). A quarta estátua compõe este referencial hagiográfico abrangente, pois no seu eventual duplo sentido refere-se ao pai terreno de Jesus e àquele que é considerado o mais perfeito imitador de Cristo, São Francisco de Assis.

Na fachada traseira da capela, desenhada como um curto abside que prolonga a forma rectangular do tempo, encontra-se um estranho símbolo, representando uma grande boca, ornada por dentes ferozes e por uma língua animalesca, sobre a qual vemos dois volumes que se afiguram faces, uma mais humana e outra animalesca, e culminando a representação num edifício de duas torres, talvez uma basílica.

Esta imagem será, porventura, uma das mais impressivas e violentas que encontramos na Regaleira. Trata-se de um símbolo perfeitamente extrínseco relativamente à demais decoração interior e exterior da capela, que não encontra conexão ou paralelo em nenhum outro símbolo presente na quinta. Não é um signo de carácter religioso, tal como o são na sua esmagadora maioria os que se encontram na capela. A imagem não se afigura conectável com qualquer símbolo esotérico ou exotérico conhecido.

Uma hipótese de trabalho será a de relacionar a imagem da boca com a rede de túneis da quinta. O que está em baixo difere do que está em cima e, pelos vistos, não admite a presença de qualquer um, pois equivale, também, a um perigo.

Outro dos símbolos incomuns da capela encontra-se na sua fachada lateral esquerda, onde se pode ver a face de uma criança ou, talvez melhor, de um jovem, ostentando uma espécie de coroa ou tiara.

À falta de referências seguras e muito embora sem qualquer base documental, podemos especular se não se tratará da face (dura) do pequeno príncipe: o Rei do Mundo ou o messias que está por nascer e que, no seio da tradição do sebastianismo, poderá significar o renascimento de Portugal do Quinto Império. Noutro sentido, com traços de ligação com o anterior, pode tratar-se da simbologia alquímica do rei – menino que anuncia a pedra filosofal, da criança que nasce da morte do velho.

E, nesse caso, as asas de ave, entrelaçadas sob a cabeça coroada, correspondem a uma representação da sublimação, como parte integrante do ciclo da Obra alquímica ?

Na porta da sacristia encontramos uma curiosa sequência de símbolos, vendo-se uma face alada de anjinho fechando o arco e, de cima para baixo:

  • à esquerda: a balança da Justiça, um palácio com duas torres, uma torre militar, ostentando ameias; uma estrela de seis pontas e um cadeirão;
  • à direita: um cálice encimado por uma hóstia; a arca de Noé, uma torre militar, mas encimada por um telhado; uma rosa e o agnus Dei.

Regina Anacleto sugere que se interpretem os referidos símbolos de forma comparativa, caso a caso, considerando que os do lado esquerdo são a emblemática de Carvalho Monteiro e os do lado direito o simbolismo cristão. No entanto, indica apenas o paralelismo da balança como símbolo da jurisprudência e, portanto, directamente ligados à formação académica de Carvalho Monteiro, com o contraponto do cálice e da hóstia como símbolos da eucaristia, nitidamente símbolos da religião Cristã.

Podemos assim afirmar, numa síntese sobre o carácter da simbologia do exterior da capela, que o mesmo é essencialmente de carácter religioso, integrável na lógica do catolicismo romano, mas com um forte pendor místico enquadrado por uma visão dualista do Mundo, do Bem e do Mal, cuja síntese e transcendência apenas pode decorrer da Fé em Cristo, redentor e salvador.

No interior da capela, sobre a entrada descortinamos um triângulo com um olho inscrito, sobreposto a uma cruz da Ordem de Cristo e a um círculo de entalhes sucessivos, que sugere uma emanação luminosa.

O símbolo que se encontra em causa integra-se na Tradição Universal, sendo de facto muitíssimas vezes utilizado pela maçonaria, mas também em templos católicos, tanto em relevos escultóricos como em pinturas. Em conclusão, afigura-se totalmente abusivo considerar este símbolo, de carácter Universal, como maçónico, principalmente por se tratar antes de uma figuração vulgar em múltiplos templos católicos, como o é também a capela da Regaleira.

A capela da Regaleira não se fica pela sua componente exterior à terra, pois contém igualmente uma ampla divisão inferior, praticamente com as mesmas dimensões da sala principal do templo, com um altar ao fundo. Parece-nos tratar-se uma cripta, com uma função potencial funerária.

Apenas resulta intrigante o facto de na ligação também subterrânea entre esta capela inferior e a arcada que conduz pelo jardim até ao palácio, se encontrar a ligação a uma mina de água, bem como a cautelosa decoração da porta de ferro forjada que abre para o jardim onde, como espécie isolada, se encontra um pentagrama. O pentagrama, a estrela de cinco pontas, é um símbolo do microcosmos humano, pois figura o homem, com os braços estendidos na horizontal e as pernas afastadas. Muito embora a estrela de cinco pontas seja um importante símbolo maçónico, a sua representação é diversa da do tradicional pentagrama, o qual, por exemplo, surge vulgarmente como símbolo integrante das representações cristãs medievais.

A capela da Regaleira é, efectivamente, um templo cristão, onde a estranheza e mistério sobressaem essencialmente dos símbolos menos comuns que referimos e que não têm conotação religiosa directa, bem como da sequência de símbolos que decoram a porta da sacristia, onde mais uma vez encontramos símbolos não religiosos, se bem que associados a simbologia essencialmente bíblica.

c. Os jardins – o patamar dos deuses:

Passemos, finalmente, aos jardins da Regaleira, começando por uma breve descrição do “patamar” dos deuses.

Nesta zona baixa dos jardins encontramos elementos decorativos e estatutária diversa, entre os quais uma ampla estátua representando um leão, que Denise Pereira esclarece ter sido realizado em chumbo por P. Rouillard, tendo sido levado para a Regaleira pela família Allen, possivelmente da Quinta do Beau Séjour (Benfica, Lisboa), sendo, portanto, anterior às obras empreendidas por Carvalho Monteiro.

Quanto às demais estátuas, na medida em que Regina Anacleto não as refere no âmbito do seu rigoroso recenseamento das obras encomendadas por Carvalho Monteiro aos mestres canteiros de Coimbra, faz-nos admitir que tenham sido introduzidas na Regaleira sob a orientação de Luigi Manini ou que, à falta de prova definitiva, se mantenha em aberto a hipótese de, tal como o leão, terem resultado de intervenção dos proprietários da Regaleira anteriores a Carvalho Monteiro.

As estátuas são em número de nove. Na sequência de quem vem do palácio, quanto às primeiras sete temos a considerar:

– Mercúrio/Hermes;

– Vulcano/Hefesto;

– Baco/Dionísio;

– Pã;

– Ceres/Deméter;

– Flora/Clóris;

– Vénus/Afrodite;

De seguida, intercaladas pela estátua do leão, portanto afastadas das demais, encontramos ainda as estátuas de:

– Orfeu e de,

– Fortuna/Tychê.

Rejeitamos a hipótese da presença das estátuas de deuses greco-romanos na Regaleira se justificar pela paixão de Carvalho Monteiro pela obra de Camões, na medida em que o referencial dos “Lusíadas” não poderia, manifestamente, dispensar a presença de Neptuno / Poseidon como imagem central, o que acabamos de constatar não ocorrer no vulgarmente referido como “patamar dos deuses” da Regaleira.

O sentido predominante do carácter simbólico dos deuses representados na quinta vai no sentido da celebração da vida e da comunhão com a natureza, que encontrámos anteriormente nas representações, pontuadas pela presença dos membros da família Carvalho Monteiro, em alguns aspectos da decoração do palácio.

d. O labirinto:

Seguidamente, aproveitando o caminho que passa pela “casa do íbis”, avançaremos para o troço inferior dos túneis.

Esta primeira parte dos túneis da Regaleira funciona como um labirinto, pelo seu carácter intrincado, que obriga o visitante a percorrer voltas e voltas, quase sobre o mesmo local, dificultando a sua orientação.

Ora, o labirinto é uma combinação da espiral e da trança, pelo que pode ser tido como uma figuração do infinito, num caso perpétuo e noutro do eterno retorno. É também uma figuração da viagem das trevas à luz, portanto podendo representar o caminho iniciático, inclusivamente sob a forma exclusivamente interior, que conduz à morte simbólica do profano e à ressurreição do iniciado, como um homem novo.

O outro elemento evidente deste troço de túneis é o lago, o qual é por vezes apresentado como simbolizando o olho da Terra, pelo qual os habitantes do mundo subterrâneo podem visualizar o que existe no nosso mundo exterior, sem esquecer a referência às águas genesíacas e ao nascimento do Homem através das águas do ventre materno.

e. A caminho do troço superior dos túneis, passando pelo aquário:

Saídos do labirinto subterrâneo da Regaleira, avançamos pelos jardins, a caminho da parte alta da quinta.

Antes de atingirmos o troço superior dos túneis, passamos pelo aquário.

O aquário da Regaleira é uma curiosa construção, desenhada como se de um maciço rochoso natural se tratasse, que se enquadra de forma perfeita na vegetação densa dos jardins, onde igualmente existe uma pequena escada em caracol, que através da artificiosa edificação permite o acesso a um outro caminho, junto ao qual, após uma curva pronunciada, se encontra a que consideramos ser a primeira entrada do troço superior de túneis.

f. O troço superior dos túneis:

Nesta segunda rede de subterrâneos, mais linear que labiríntica, encontramos um conjunto de cinco locais de entrada, dois dos quais na forma de poços, a saber:

a) O poço que denominaremos imperfeito;

b) O poço principal, perfeito;

c)A arcada com torreões, decorada com duas figuras animais e um búzio;

d) O lago;

e) O picadeiro ou campo de ténis.

Para que a visita possa ter carácter simbólico, independentemente da sua função à data da construção, a primeira entrada a considerar é o poço imperfeito, o qual, com apenas 8 metros e 90 centímetros de fundo, tem uma estrutura central que é o poço em si próprio, formada por pedras toscas intercaladas e que permitem visualizar o seu fundo, por trás das quais se desenrola a escada em caracol que leva à parte mais profunda da construção.

Como o poço tem, também, uma pequena escada superior, haverá que seguir por esta, chegando-se a um beco sem saída ? Escolhemos, talvez com o receio decorrente do aspecto tosco e pouco iluminado da construção, a escada que desce, acedendo então a um túnel e à viagem subterrânea que este possibilita.

Estamos na base do poço imperfeito. Os jardins, a luz do dia (ou da Lua …) ficaram para trás. Entremos no túnel. Avançamos agora por galerias baixas e relativamente apertadas, onde rapidamente não chega qualquer luz natural e que também não dispõem de iluminação artificial.

O troço superior de túneis da Regaleira não constitui, directamente, um labirinto, mas tem com este e com a sua carga simbólica uma relação, pois os seus caminhos subterrâneos podem levar a diferentes direcções.

Alguns metros após sairmos do poço imperfeito encontramos uma passagem à esquerda, que conduz a um beco sem saída. Temos necessariamente que recuar, voltando ao subterrâneo anterior, e decidir se regressamos ao poço e ao exterior, ou se a nossa coragem nos impulsiona mais além.

Nada nos orienta nessa escolha, nenhuma diferença na aparência do túnel, nenhum sinal ou decoração. Avançamos no sentido original, aparentemente para as profundezas da terra, e logo alguns metros adiante encontramos uma nova encruzilhada. Ou seguimos em frente, ligeiramente à esquerda, ou avançamos por um outro túnel, à nossa direita.

Vemos alguma luz ténue à direita e somos, eventualmente, tentados pela proximidade da superfície da terra, pelo nosso mundo de todos os dias. Avancemos, para já, na direcção da luz. Encontramos adiante uma nova bifurcação. De novo duas opções.

Se formos pelo túnel da direita, desembocamos no que parece um picadeiro, referenciado pela historiografia como o campo de ténis da quinta.

Nada de muito especial nos chama a atenção, pois a superfície de terra que, nos dizem ter sido o local onde se praticava o ténis, encontra-se enquadrada, sem grande magnificência, por um pequeno troço de muralhas, onde se divisam torres.

Vamos, de outra forma, admitir que escolhemos avançar em diante, na última bifurcação dos túneis por onde passámos. Chegamos rapidamente a um lago, sendo a saída do túnel por uma arcada enquadrada pela pedra que, artificialmente, cria uma encosta pedregosa na sequência da superfície de água.

Sobre o lago encontra-se uma ponte que permite transpor ambas as margens e aceder a pequenos caminhos entre a vegetação, bem como às estradas de terra que rompem os jardins da Regaleira. Se escolhermos não regressar aos subterrâneos, do caminho junto ao lago chegaremos rapidamente à zona das cocheiras ou, por diferentes vias, a qualquer outra parte da Regaleira.

Pela nossa parte, pretendemos seguir o nosso trajecto oculto e conhecer as restantes componentes dos túneis, pelo que iremos admitir que logo no caminho original, oriundo do poço imperfeito, escolhemos avançar sempre em frente, pelos subterrâneos escuros e húmidos, sem prestar qualquer atenção às vias laterais que encontrámos, saindo desse túnel central.

A alguma distância do poço imperfeito, vemos de novo a luz, a qual nos chega através de um harmonioso arco. Vemos então o impressionante poço perfeito, nos seus 23 metros e 60 centímetros de altura, decorado interiormente por 22 nichos, de diferentes dimensões, sem qualquer conteúdo, e com a sua escada em caracol, com 10 patamares, enquadrada por leves e graciosas colunas.

O eixo da entrada inferior do poço está directamente orientado Este – Oeste, considerando o nosso sentido de marcha vindos do subterrâneo. No chão, vemos uma rosa dos ventos, desenhada em mármore de cor rosada e branca, a qual se insere de forma perfeita na acima referida orientação cardinal do poço.

Estamos ainda na base do poço perfeito e, por cima de nós, vemos no topo da construção a luz do Sol. Há, portanto, que subir em direcção à luz. Enquanto subimos, não temos qualquer forma de saber se e como poderemos sair pelo topo do poço.

Sensivelmente a meio caminho das escadas, por alturas do quarto patamar, uma nova alternativa nos surge. Há, de facto, um novo acesso a um túnel, no final do qual se divisa, algo indistintamente, a luz do Sol. Podemos, portanto, abdicar de subir ao topo do poço, chegando sem dúvida mais rapidamente ao exterior.

Chegámos a uma outra saída dos túneis, neste caso enquadrada por uma ampla construção que simula um troço de muralha, com pequenas torres nos dois extremos e um varandim com cúpula ao centro.

Ao centro da construção encontra-se um arco de volta redonda, onde se podem observar alguns motivos simbólicos interessantes.

A decoração do arco inclui 13 vieiras estilizadas, de entre as quais apenas as duas que se encontram mais em baixo, nas duas bases do arco, apresentam a face convexa. Na face interior do arco vemos peixes, em número de 12, de aspecto relativamente grotesco.

Ao centro do arco encontra-se um conjunto escultórico constituído por um grande búzio, ao qual se encontram agarrados dois animais de aspecto reptiliano, em cujos membros inferiores e base do dorso vemos entrelaçadas folhas e caules de nenúfar.

Talvez a presença do búzio nos facilite a interpretação. Efectivamente, existe uma concha espiral, confundível com o búzio, que é vulgarmente denominada tritão, na medida em que na mitologia greco – romana essa concha seria tocada por Tritão, filho de Neptuno e de Anfitrite. Esse deus marinho é muitas vezes representado acompanhado dos tritões, seus descendentes, que simbolizam as ondas.

Neste contexto, por correlação com o búzio – tritão ao qual se agarram, os seres reptilianos representados neste portal dos túneis poderão, eles próprios, tratar-se de tritões, animal da família das salamandras (salamandridae, género trituri).

Curiosamente, no interior do grande búzio, algo dissimulado, encontramos um búzio de pequenas dimensões. De novo a simbologia, aquática, da geração da vida ?

Talvez mais curioso ainda seja o facto do arco que referimos ter sido equipado com um tubo de água, dissimulado, que muito embora não se saiba se alguma vez esteve operacional teria permitido criar uma cortina de água cobrindo toda a superfície do arco… e ocultando a entrada para os túneis.

Regressemos, por uma última vez, ao nosso trajecto original através dos túneis de Regaleira.

Caso não nos tivéssemos desviado a metade da subida do poço perfeito, optando por subir até ao seu topo, prosseguindo literalmente para a luz, teríamos chegado a uma varanda superior, da qual poderíamos ter prosseguido por uma outra escada até a um último patamar, que não leva a nenhum lugar, mas apenas à visão da copa das árvores dos jardins e do céu, sobre estas.

Da varanda é possível sair para os jardins, por um leve toque numa (aparente) parede de pedra lisa, a qual, como que por magia, se mostra uma porta secreta giratória e que conduz a um recanto dissimulado entre altas pedras cobertas de musgo.

Avançando para os jardins, se olharmos para o local de onde viemos, observamos apenas o que parece ser um grupo rochoso entre a vegetação da Regaleira, o qual oculta totalmente quer o topo do poço, quer a sua secreta porta de saída.

Quem se encontre nos jardins, não só não tem forma de saber onde se encontra o acesso ao poço, como não poderia também compreender de onde teríamos saído, caso não fosse conhecedor dos sigilosos subterrâneos da quinta da Regaleira.

g. Final da visita:

De regresso à parte baixa da quinta, pela qual sairemos, atravessando os jardins, passamos pelas cavalariças e por algumas outras construções existentes da quinta, de entre as quais vale a pena destacar a estufa.