Em meados dos anos oitenta do século passado o GIFI realizou uma investigação de razoável envergadura acerca da prática de exorcismos em Vera Cruz de Marmelar (Portel- Alentejo), na sequência de uma notícia sobre a matéria publicada no jornal “Correio da Manhã”.

Nessa como em tantas outras ocasiões foi a comunicação social que chamou a nossa atenção para a verificação de determinados acontecimentos passíveis de investigação.

Para além de um amplo conjunto de textos acerca do fenómeno da possessão diabólica e acerca da história da localidade, foram realizadas três deslocações ao local, em 28 de Outubro de 1985, 23 de Março de 1986 e 5 de Março de 1988.

Em paralelo, foram realizadas entrevistas a sacerdotes, em 22 de Outubro de 1985 e 12 de Março de 1988, bem como a obtenção de parecer acerca dos casos registados por parte da psicóloga Drª Maria da Conceição Faria.

1- Vera Cruz

Quanto à povoação, situada a cerca de 10 km de Portel, sede do concelho, é referida nos registos históricos desde o século XIII, muito embora se admita que a ocupação do local seja anterior.

Ganhou foros de alguma importância por ali ter sido instalado em meados do século XIII um mosteiro hospitalário, importante edifício que permaneceu na posse da ordem (então já denominada “de Malta”) até ao século XIX, ou seja, até que com o liberalismo foi decretada a extinção das ordens religiosas no país.

Actualmente trata-se de uma pequena povoação alentejana, caracterizada pela particularidade de se integrar numa região razoavelmente montanhosa, diferente, portanto, da usual imagem da planície alentejana.

Vera Cruz não atrairia o visitante, muito menos o investigador, não fosse o caso de ali se encontrar uma preciosa relíquia, nada mais nada menos que uma pequena parcela do Santo Lenho, ou seja, da cruz onde Cristo foi crucificado.

É bem sabido como a soma dos pedaços do Santo Lenho conhecidos chegariam para perfazer uma floresta de cruzes. A explicação é simples, pois o fenómeno decorre do facto de no local da crucificação de Jesus, o gólgota, os romanos realizarem igualmente muitas outras crucificações, pelo que, séculos depois, se tornou fácil encontrar no local pedaços de madeira com os quais fazer relíquias, para comércio junto dos crentes.

Foi exactamente por essa via que, durante a idade média, foi trazido da Terra Santa um pedaço do Santo Lenho, que se destinava à Sé de Évora (onde aliás se encontra actualmente uma relíquia com idênticas características). Diz a lenda que a mula onde o Santo Lenho era transportado para em Vera Cruz, recusando a ir mais adiante e ali vindo a morrer.

Logo se produziram uma série de milagres, brotando da terra uma fonte tia por santa e nascendo um pinheiro no local onde o arneiro espetou a vara com que picava a mula.

O sinal era evidente: a relíquia devia ficar naquele local.

Ora uma relíquia de tão grande importância é instrumento conhecido pela sua eficácia no âmbito do ritual católico, pelo que desde logo ali se começaram a realizar exorcismos.

À época da investigação realizada pelo GIFI, os sacerdotes locais eram compelidos a manter a tradição, ainda que contra sua vontade, pelo que ao local acorriam numerosos forasteiros, em especial após a missa de Domingo, procurando alívio para os seus tormentos espirituais.

2- Possessão diabólica e exorcismos:

A tradição católica, de forma similar ao que acontece na doutrina de outras religiões, admite a existência de um espírito maligno (quase divino), o Diabo, que conta com uma legião de auxiliares (quase anjos), os demónios.

A presença do ente maligno, propriamente dito, nestas situações é considerada extremamente rara

São especialmente os demónios, quem tem o poder de atormentar os homens, quer pela tentação diabólica (estímulo demoníaco sobre o homem), quer pela infestação local ou pessoal (influência indirecta sobre o homem ou sobre as coisas inanimadas, animais e vegetais), quer pela possessão diabólica, situação que aqui especialmente nos interessa.

Esse último grau, o mais grave, implica que alguém é tomado espiritualmente e de forma profunda pelo demónio, que faz da sua vítima instrumento.

O exorcismo é um ritual que tem em vista, de forma preventiva (por exemplo, como parte integrante do baptismo) ou curativa (o exorcismo em sentido estrito) proteger o homem da possessão diabólica. O rito segue regras estritas constantes do “Ritual Romano”, utilizando o sacerdote orações, água benta, objectos benditos como o Agnus Dei e, claro, relíquias como o Santo Lenho.

Durante o ritual, assim que consegue forçar o demónio a manifestar claramente a sua presença na pessoa possuída, o sacerdote exorta-o a libertar aquele corpo, reforçando esse comando pelo uso sucessivo de instrumentos como os acima referidos.

Importa dizer que um sacerdote quando é ordenado recebe a capacidade para realizar exorcismos, sendo que normalmente é necessário obter uma autorização do episcopado competente para que o exorcismo seja licitamente efectuado, o que normalmente implica uma investigação prévia que afaste as explicações médicas ou psicológicas para a sintomatologia manifestada pela pessoa em causa.

Em Vera Cruz, no tempo do Padre Silvério, pároco local à data da investigação, os exorcismos eram totalmente públicos, o que permitia o acesso a jornalistas e investigadores. Após a sua morte, foi clara a política da Igreja no sentido de afastar o público, tendo-nos sido dito que já não se realizavam exorcismos no local, facto amplamente desmentido por informações a que foi possível ter acesso.

Os rituais a que assistimos apresentavam algumas particularidades, designadamente porque não havia uma verdadeira análise prévia de cada caso, muito embora o Padre Silvério colocasse sempre algumas perguntas ao suposto possesso, sendo vulgar insistir com as pessoas para consultarem um médico.

Em todo o caso, tanto eram submetidos ao ritual aquelas pessoas que, sem quaisquer sintomas ali iam como quem participa na comunhão, como manifestos doentes psíquicos e, por fim, aqueles casos mais estranhos que nos deixaram dúvidas sérias em termos de qualificação.

De facto, se bem que a explicação psicológica seja normalmente fácil de descortinar, ainda que sem a realização de um estudo rigoroso e directo por parte de um psicólogo, a verdade é que num caso ou noutro os possessos apresentaram fenomenologia difícil de entender.

O exemplo mais forte é o de uma rapariga de cerca de dez anos que se manifestou ao longo de horas de forma brutal, gritando, contorcendo-se, tentando fugir da igreja, o que implicaria a sua qualificação como um caso de histeria. No entanto, a histeria é extremamente invulgar em crianças tão pequenas, em especial com a gravidade que decorria das atitudes manifestadas neste caso.

É um facto que não se assistiu a qualquer fenómeno qualificável como claramente insólito, pelo que fica essencialmente o registo de um facto sócio-religioso muito perturbante.

Excertos de gravações:

Imagens: